Um dia alguém me disse que eu seria uma
ótima psicóloga. Que apenas ao permitir o outro falar, ou ao escutar, já
ajudava bastante. Fato é que, numa situação assim não me limito apenas à
escuta, mas também faço pequenas intervenções que, nem sempre, são o que as
pessoas esperam ouvir. Não meço palavras para agradar, tampouco dar razão para
os sentimentos que as pessoas me apresentam, caso eu não concorde. Normalmente
respondo com uma pergunta, com uma observação que não fora antes percebida.
Acredito que por isso tenham pensado que eu seria uma "ótima
psicóloga".
Entre tantas outras observações, um dos
fatos que me aproxima muito a Educação de Jovens e Adultos (EJA) é a
possibilidade de ter um contato com a vida desses alunos, possibilitando
trocas, reflexões. Com crianças isso também aconteceria, mas o contato com
adultos traz essa facilidade, empatia e aproximação das realidades.
Hoje, somente uma aluna compareceu.
Ontem não foi à aula, disse-me hoje que faltou porque estava muito cansada.
Sentamos e conversamos, começou a contar sobre seus filhos, seus netos. Tem 5
filhos, uma das filhas é também aluna da EJA. Na verdade, o assunto iniciou
quando falávamos sobre a falta de água que ocorreu hoje no bairro. Disse-me que
desde cedo já faltava, conseguiu guardar água ao notar que se enfraquecia o
fluxo. Mencionou tantos aspectos de sua vida: sua casa, a casa dos filhos, os
netos, fotos dos netos. Mencionou que ama muito a todos, que são a razão de sua
vida, que são lindos. Nessa história não mencionou o esposo. Quando questionei
sobre isso, falou: "sou casada com o mesmo homem há 37 anos, profe!"
Conheceu o esposo aos 17, foram morar juntos e casaram-se aos 20. Aí vieram os
filhos, entre uma briga e outra: "brigávamos, voltávamos e fazíamos um
filho...brigávamos, voltávamos e fazíamos um filho". Disse que depois de
tanto tempo casada as coisas já não eram como antes, não há "aquela
emoção". Nossa conversa chegou até um ponto em que avaliávamos que os
sentimentos vão mudando, e que a atual amizade e cumplicidade, a confiança, são
também um amor, um amor de outro jeito, mas amor.
"Meu marido era terrível: saía do
serviço na sexta de noite e só aparecia em casa domingo de noite. Bebia e me
batia. Hoje já não faz mais isso, não se mete comigo". Eu a questionei
sobre qual "reviravolta" a história deles tinha passado para as
coisas mudarem assim. Sei que ela trabalha em uma atividade da qual a filha não
se orgulha, tampouco ela. Esconde sua fonte de renda, não gosta de expor. É uma
atividade lícita, honrosa e importante, mas ela não gosta de mencionar.
Acredito que a reviravolta seja advinda
de sua atividade econômica, sua parcela no orçamento familiar e na aquisição do
respeito, por sua independência econômica. Isso não ficou explícito, pois a
mesma não menciona sua atividade. Mas creio que esta seja uma razão muito
razoável, dada a situação de submissão econômica e social que, muitas mulheres,
sofrem pela dependência econômica e afetiva do marido.
Hoje, ao explicar a atividade que
trabalharíamos, após breve contato com a tarefa disse: "não vou conseguir
fazer isso, profe" Eu a enalteci e disse: "quem tem um casamento de
37 anos, consegue qualquer coisa!" Rimos juntas. E no final da aula
ofereceu de presente (sim, foi um enorme presente ouvir isso): "nunca
imaginei que faria este tipo de continhas, agora estou aqui fazendo, quarenta
anos atrasada!"
"Nem "atrasada" nem
incapaz, minha amiga. Tua presença aqui, na escola, buscando tua mudança é um
ato de muita coragem. És mais forte do que imaginas!".
Como eu disse antes: não poupo palavras
para agradar ou discordar. As vezes digo o que as pessoas não querem ouvir.
Hoje disse o que a pessoa PRECISAVA ouvir. Bem de perto, palavras vindas de
quem está nos bastidores da transformação, observando de camarote a história
dar mais uma "reviravolta".
Que história bacana Maria! Emocionante! Também acredito nessa escuta e no que podemos contribuir ouvindo e ponderando. Pelo que contas, tens características sim de uma escuta que lembra uma "Ótima Psicóloga", também estás te revelando Ótima professora de EJA e com certeza já eras uma ótima professora de Ensino Fundamental. Escutar, deixar falar, fazer perguntas, fazer refletir é necessário e combina muito bem com a nossa profissão professora. Bom que deixas marcado aqui! Essa tua postagem considero interpretativa. Pode ser? Segue escrevendo. Revisita as Postagens dos 4 eixos iniciais do Curso e reflete sobre aquelas postagens. Abraço, Betynha. (Tutora PEAD2/UFRGS - Seminário Integrador Eixo VIII).
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