Era um dia corriqueiro. E já não sei mais dizer se na Educação há dias "corriqueiros". Não há rotina, não há padrão. Todos os dias são novos desafios e surpresas que nos chegam. Notícias boas e ruins.
Assim, neste dia "corriqueiro", em sala de aula após realizar um exercício com a turma, um aluno começa a falar sobre sua família. Sentado à minha frente, me conta que conheceria naquele final de semana a nova namorada de seu pai. Esta, ele "não gostava", pois já havia namorado o pai e agora a própria se dizia "mudada". O aluno, apreensivo, comentou que se voltassem a morar juntos ele se mudaria para a casa da mãe onde já não convive há algum tempo.
Ouvindo a conversa, outro se aproximou e também relatou que sua vida não anda fácil. Trabalha em um mercadinho no turno inverso e ajuda os pais quando chega em casa. A "mãe" a qual se refere não é a mãe biológica. Ele é fruto de uma relação extraconjugal do pai, e sua mãe biológica o abandonou. A esposa legítima do pai o criou como filho. Ao contar esta estória, não demonstra tristeza e concorda comigo quando lhe disse "sua mãe é uma grande mulher, enfrentou uma situação difícil e te amou como se vc tivesse sido gerado por ela".
Um ouvindo a história do outro, não imaginavam que tinham histórias familiares cheias de vieses. Iniciaram as falas com um jeito tímido, mas queriam falar. Mas o tom inicial da fala era de "que droga essa minha família". Ouvi tudo com atenção e acolhida. "Viram, guris, como não tem família perfeita? Toda família tem um rolo, uma confusão", disse-lhes de um lugar de quem tem uma família um tanto quanto conturbada também.
Neste momento de escuta, um deles pronunciou: "como é bom falar as coisas, né sora?" Rimos juntos daquele momento e nos aproximamos. Era a primeira semana de aula e eu não os conhecia muito bem.
Relembrei este episódio quando li o artigo APRENDIZAGEM AMOROSA: TRANSFORMAÇÕES NA CONVIVÊNCIA DE ACEITAÇÃO DO OUTRO COMO LEGÍTIMO OUTRO. Nele, uma revisão de Maturana e Serres propõe:
É necessário saber que não se sabe tudo e que a vida é uma eterna aprendizagem com seus companheiros de viagem, “arrancar alguma parte de si, para abrir espaço para o outro”. A confiança é a condição básica dessa possibilidade de transformação, como nos aponta Maturana. Necessitamos compor um domínio de ações onde essa confiança possa emergir. Estar nu, sem pré-conceitos, na chegada, a outra margem nos convoca a pensar: o que me espera? Será que falaremos a mesma língua? Gostarão de mim? É num território novo que estou chegando, me aceitarão como seu legítimo, como hóspede ou como estrangeiro? Estarei nu o “suficiente para compor com minhas novas roupas”?
Eu estava, naquele momento, em plena "travessia" com os alunos. Despida dos preconceitos e pronta para acolher o que me traziam. Nesta convivência, temos a construção da Aprendizagem amorosa, onde a aceitação do outro é premissa para que se estabeleça a relação.
Não foi um dia corriqueiro. Não será nunca mais. Já temos, ao menos naquela sala de aula, uma relação de confiança. Abrimos espaços para aprendermos juntos, muito além das aulas de Ciências. Sou grata por este momento.
REFERÊNCIA:
REAL, Luciane Magalhães Corte; PICETTI, Jaqueline Santos. APRENDIZAGEM AMOROSA: TRANSFORMAÇÕES NA CONVIVÊNCIA DE ACEITAÇÃO DO OUTRO COMO LEGÍTIMO OUTRO. Educação e Cidadania, v. 13, n. 13, 2014.
Olá Maria!!
ResponderExcluirÓtimo texto, parabéns pelo trabalho como professora.
Att,
Tutora Rocheli